A pintura
sobrevivente
É comum a relação entre pintura e história da arte, história
que de alguma maneira recriou a própria ideia de Arte, dividindo suas
manifestações em grupos, artistas, períodos
e estilos, datas, povos e acontecimentos. Na história o tempo é totalmente
abstrato, calcado na linguagem e definitivamente não experienciado por nós. Em
uma olhada por sobre estas pinturas, constataremos que não podemos vê-las
apenas pelo vocabulário fixo e sedentário da história.
Nômades, as imagens, não só na pintura, estão totalmente imbricadas
de temporalidade e são a própria existência do tempo, arrastando com elas as
formas que, desde o platonismo, se pretendem fixas e eternas. As formas, pathos,
foram forjadas na antiguidade, ao contrário do que prevê a história, elas não
começam nem acabam pois também se transmutam no tempo e sobrevivem de uma maneira pulsante e intensa através de todas as obras do homem.
Na pintura as formas são evocadas na temporalidade do gesto,
ala prima. Há nesse processo um retorno,
não o retorno do duplo, ou do mesmo, do igual, mas um retorno primordial revelado
na ação que se dá na complexidade de todos os instantes, na energia
configuradora da pintura. Não se trata
do o que é, mas do como, não do um, do fixo, do articulado,
do decalcado na noção acadêmica de eficiência, mas sim o movimento, a conexão
dos campos, os desbloqueios, os devires...
Dessa maneira, estas pinturas sobrevivem, ou melhor, suas aparências
sobrevivem em seus aspectos materiais e temporais. Não é através de uma
metafisica-simbólica- alegórica, ou mesmo em nome de alguma “eternidade” que
vamos desvendar suas verdadeiras contradições, seus impulsos para
sobrevivência, para animalidade e para a metamorfose. Afinal pintar é puro devir, não é apenas um meio
fechado em si mesmo. Assim como na tragédia, evolui nas tensões, entre os
impulsos da vida e da morte.
As pinturas aqui mostradas solicitam muito mais que a visão,
elas solicitam o olhar, a memória, o saber, o desejo. São pinturas que agem como campos de forças e
não como campos de significações. Mesmo
quando evocam as aparências de paisagens, coisas, pessoas, que são lugares de
configurações, são nas forças, causadoras de todos os movimentos, que este devir-pintura
nos surpreende a cada olhar, atravessa o tempo,
nômade, como forma primitiva e sempre presente.
Rubens Zaccharias Junior.
Coletivo Banzo
Participar da curadoria desta mostra do Coletivo Banzo significa "reviver" junto
aos fotógrafos parte de sua rica trajetória. Em meio a três discursos que se alinham a proposta de uma fotografia
simples, o átimo reflexivo e o improviso
sincero, me deparei, na complementariedade
entre as três poéticas, com aquilo que me parecia intuitivo e ao mesmo tempo
complexo: como relacionar as contingências do real, o processo do tempo, a
transitoriedade da vida, ao olhar crítico, humanista e nômade, presentes no
trabalho destes três jovens fotógrafos? Sem incorrer em tautologias e
definições vazias, deixo a questão em aberto e convido-os a apreciarem as
imagens que, sem a espetacularização de efeitos e afetações estéticas, dizem
respeito a todos nós.
Adequar palavras às imagens é tarefa complexa, o processo passa por
transfigurações e ressignificações; afinal como conciliar o que se dá em
partes, característica da escrita, com o que se dá num todo, num só golpe para
o olho, característica das imagens? Como conciliar a simultaneidade do mundo, a
aleatoriedade da vida, com a linearidade da linguagem? Bem sabemos que a fotografia é campo
privilegiado da imagem, então vamos tentar esboçar em poucas palavras a
urgência metalinguística do Coletivo Banzo.
Registrando pessoas, cidades, acontecimentos, a natureza, o movimento, a
pluralidade e os anacronismos das sociedades, os artistas do Coletivo Banzo a
princípio propuseram suas obras a partir
de lambes cujas matrizes foram fotografias dispostas em tríades, colados em
meio a lugares públicos e posteriormente refotografados, acampando a presença do
publico que os assistia. Os lambes foram a base que unificou as diversas
linguagens do Coletivo Banzo. Nesta mostra reúnem fotos do acervo de cada um
dos três integrantes do grupo, fruto de vinte anos de trabalho ininterrupto,
revisitadas em cerca de quinze fotografias de cada um.
Sem desfigurar os temas registrados, nas fotografias do Coletivo Banzo temos
uma outra imagem da mesma imagem: passagem, ligação, complexidade e
desdobramento da sua própria aparência, o que se destaca nestas obras é sua
posição catalizadora e relacional. Interface
entre o olhar e a ação, o conceito e a coisa. Estão aqui anexados os olhares do
fotógrafo, do público e de nós que vivenciamos, cúmplices, este verdadeiro agenciamento
semântico. Afinal, as imagens fotográficas nos servem como guias para
acessarmos um olhar sobre o mundo, mais do que o registro das coisas em si, o Coletivo
Banzo nos propõe o encontro, o acaso e a sensibilidade.
Rubens Zaccharias Jr.
Professor do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP
Nova Pasta: Projeto Capela Sistina
Projeto Nova Pasta:
Capela Sistina é parte de uma série releituras que vem sendo
desenvolvidas pelo grupo desde 2005,
onde foi apresentado na galeria Sesc Paulista a exposição A roupa nova do rei. Em seguida: Mickey Mouse na Bienal de Havana 2007. Em seguida foi realizado Santa
Ceia 2010, releitura fotográfica do
afresco de Leonardo Da VInci. Assim como a trilogia: 1: A
revolta dos burros, instalação muti-midia,
apresentada no Sesc
Consolação 2012, que conta a história
do burro frente ao reconhecimento de seu valor para a humanidade. 2: Caveirão
, ação gravada em vários locais ermos e manifestações em São Paulo, utilizando
a alegoria de uma caveira levantando uma taça, alusão á copa no Brasil 2014, e
apresentada recentemente na mostra 10x1 na Galeria Virgílio. E agora o projeto 3: Capela Sistina onde ao reler os
famosos afrescos, o grupo discute os conceitos de circularidade, imersão,
imagem tempo e representação, numa releitura em anamorfose dos afrescos de
Michelangelo com imagens do Nova Pasta.
Nova Pasta
trabalha nas interfaces entre arte,
política, história, imagem, museu, nomadismo, deslocamento, identidade e cultura,
utilizando objetos alegóricos e imagens pastiche em suas ações no espaço
urbano e midiático. As performances,
ações e objetos Nova Pasta contemplam os mais variados temas e narrativas. Seus
trabalhos servem como dispositivos à percepção, imaginação e crítica.
Nova Pasta é formado
por: Antonio Brasiliano, Augusto Citrangulo, Eduardo Verderame, Fabiana
Mitsue, Guto Lacaz, Lucas Dh, Marcos Vilas Boas, Mariana Cavalcanti, Mauro de
Souza, Paulo Zeminian, Rogerio Borovik, Rubens Zaccharias Jr e Tulio Tavares.
Os afrescos de
Michelangelo na Capela Sistina
Os Profetas e as Sibilas anunciam as cenas impressionantes
de figuras que habitam um céu quase abstrato que abriga cenas de antigas
histórias do povo hebreu e de passagens bíblicas que nos mostram imagens sobre
o nascimento, Deus, o filho de Deus, a criação do universo, a criação dos
planetas, julgamentos, condenações, quedas, mortes e transcendências.
As figuras moldam um espaço separado por colunas e tímpanos
pintados em trompel- l’oeil, em cada qual se desenrola uma cena das
histórias em seu ponto crucial, também habitam
estes nichos estas figuras solitárias acompanhadas de anjos: as sibilas e os
profetas, são eles que contam as histórias que se encontram acima deles no
teto. Todas as figuras das grandiosas cenas, pintadas em elaborados escorsos e
perspectivas. As figuras também tem
movimento próprio, deixando de ser meros personagens simbólicos adquirindo
autonomia própria e universalidade.
Estas figuras foram inspiradas na escultura grega, foi
descoberto, na época, uma cópia romana do Laocoomte[i]
nas proximidades de Roma. Michelangelo dizia ser mais escultor do que pintor., Seus afrescos na verdade são histórias de corpos em
torções, dramaticamente representados,
como na estatuária helênica. Suas figuras mesclam o mundo antigo com o
mundo cristão, ciência, religião e humanismo.
Como um rito de passagem, a experiência da Capela Sistina é
uma maneira de compensar todas as nossas perdas. Estão lá histórias trágicas:
castigos, expulsões, Noé embriagado, dilúvios, separação das terras, secas das
águas, purgatório, e muitas outras desgraças para além da nossa compreensão.
Mas, é uma arte de abertura a todas as épocas, lá também estão Fídias e Dante,
o bom e o belo se unindo: ciência
ocidental e o deus do oriente próximo,
medos, virtudes, fraquezas, somatória de forças. Lá estão os profetas,
os Ignudi e as Síbilas, Eva, Adão e Deus e muitos outros.
Nova Pasta:
Capela Sistina reúne personagens que
ora são monstros voadores saídos da TV, animais, esqueletos, artistas, cientistas, mártires, sacerdotisas, cachorros
cósmicos da periferia,
ou ainda, heróis devolvidos à condição humana, figuras que também
traduzem um pathos de misturas
antropofágicas e intuitivas. O cenário
não podia ser outro, imagem das nuvens e seu movimento giratório e constante.
Onde se propõe a ideia de ciclo, de circularidade do tempo, algo parecido com
os efeitos e mensagens da Capela Sistina com suas histórias também circulares.
Para trabalharmos o conceito de circularidade recusamos a
linearidade na aplicação do conceito ao objeto (obra), utilizamos a anamorfose, procedimento
altamente complexo desde a época de Michelangelo tem uma criatura anamórfica
nos afrescos . Na anamorfose se instaura o elemento puramente imagético, sua
semelhança se dilui num jogo especular. Trata-se de objetos conjugados a um
valor próprio vindo da sua aparência distorcida.
Na anamorfose Nova
Pasta: Capela Sistina, o elemento narrativo é o próprio significante, a
qualidade convexa e visível. Sua virtualidade como formas emergindo do
chão. Seus seres são diluídos em ondas
circulares e algumas características são restituídas no cone de aço que a
captura. Não só a imagem de um céu e seus personagens, mas tudo e todos a sua
volta. O observador é convidado a participar da circularidade do objeto.
Captação do olhar, algo como o olhar e ser olhado ao mesmo
tempo, circularidade e não dualismo, imagem que se reflete no espelho. O
espelho é um dos instrumentos utilizados
no desenvolvimento das pesquisas da representação em perspectiva desde o
Renascimento, é também elemento
semiótico de fuga dos planos lineares,
pois o espelho distorce, ele é
avesso a qualquer tentativa de controle.
Estamos devolvendo ao cone espelhado nossa imagem: convexa, mutante e suspensa, espaço virtual,
icônico, reflexos , quase manchas, massa circular azul, coletiva, instável.
Anamorfose
Discutimos o fato de que grande parte das representações do
Renascimento foram feitas utilizando as leis da perspectiva, o olho como o
único observador de uma cena, ponto
a ponto, como se a nossa experiência
visual tivesse um resultado final , ou ainda, um método de coincidências entre
o olho e o olhado. Mas olhado de onde? Só de um ponto? Lei universal? Como num
quadro renascentista?
Observamos que a perspectiva desenvolvida desde então busca
unir os pontos, quer que o olho funcione como um definidor das coisas, (.)o que se trata na perspectiva renascentista é a
demarcação do espaço, não da visão e constatamos que isso são coisas bem
diferentes!
Através dessas indagações nos surgiu a ideia de uma concepção
plástica que invertesse este esquema
puramente espacial - dos pontos da
perspectiva tradicional - em inusitadas distorções e espelhamentos, ou seja,
propomos uma experiência imagético/espacial nova, utilizando um antigo método
descoberto empiricamente. O uso
“invertido” da perspectiva: a anamorfose.
Anamorfoses são feitas desde sempre, foram incrementadas nas
pesquisas óticas de Brunnelleschi e Dürer que usaram vários objetos, tais
como, portinholas, tavoletas,
grades, como filtros. Entre o olho e o as
coisas observadas num espaço utilizavam estes apetrechos a fim de coincidir
tais pontos, uma ideia de instituir,
como uma verdade científica, a
perspectiva correta de um determinado espaço.
Entretanto, observamos que ao mesmo tempo eles descobriram
que bastava inverter as utilizações
desses instrumentos que teriam o prazer
de representar uma perspectiva totalmente deformada, ou seja, sem a pretensão
da busca do igual. Algo meio oculto e mesmo metafórico. As chamadas anamorfoses
são estranhas e estimulantes superfícies, surpreendentes, mais próximas do
espelho como espaço contraditório entre o duplo e o igual.
As anamorfoses para além dos espelhos - afinal espelhos não
podem ver - nos dizem que o modo de
nossa presença no mundo não se resume a
um olho em perspectiva: ligeira metafísica
da ilusão. As pesquisas geométricas sobre a perspectiva acabavam
deixando a visão e o olhar de fora, sua
busca por pontos coligidos no espaço é uma dimensão parcial no nosso campo do
olhar.
Concluímos que a anamorfose é um procedimento que faz
aparecer qualquer coisa num estiramento, numa distorção particular. Na
anamorfose a estrutura é o exemplo, ela é um
outro estado da coisa, pois como já dissemos, ela se despede da semelhança
e das dualidades, nos mostrando o obliquo, o suspenso, a vertigem. E evoca
nosso olhar em sua função pulsante, explosiva, estendida. Imagem voadora a se
auto representar junto ao próprio reflexo de quem a observa, circularidade ao
qual nunca estamos de fora.
Rubens
Zaccharias Jr.
[i]
Laocoonte e seus filhos. Cerca do século I a.C. Mármore de Paros, O Laocoonte
que está hoje no Pátio Belvedere, no Vaticano, foi encontrado aos pedaços em
1506 num vinhedo no Monte Oppio , alguns acreditam que seja uma cópia feita
pelo próprio Michelangelo que visitou o local na época. Loacoomte, o
personagem, é um herói troiano. Sóflocles e Virgílio escreveram sobre este
personagem mítico, morto com seus filhos por serpentes.
O Burro alado: a figura do burro e o
imaginário.
“ Os grandes problemas estão na rua”
Nietzsche
Vamos crer por um momento que não somos nós os donos da
nossa percepção e assim, saindo do prumo, da verticalidade e do ponto de vista,
vamos para a horizontalidade animal...e recriar em nossas mentes o que é ou poderia
ser um burro.
Os incontáveis contornos de nossa própria imagem, psicológicos,
sociológicos, fisiológicos, filosóficos, parecem nos levar a crer que é
necessário levar a sério um projeto radical. Aqui no caso, combinar a figura
humana com outros seres, mais especificamente o burrico! E neste esforço
demonstrar que arte é a hipótese da nossa própria irrealidade.
Ser um burro então, é
deixar de ter a pretenciosa percepção onde o mundo se organiza, é deixar que
nossas proposições deixem de servir como medida universal do cosmos. Entre o
infinitamente grande e o infinitamente pequeno do universo, acontece muita coisa, e o burro sabe disso.
Informe
Devemos a Georges Bataille o conceito de bassesse ( baixeza
) para designar um mecanismo que serve para obter o informe, para ele, o informe é a categoria que permite desconstruir
todas as demais categorias. “ O cuspe,
deletério em seu estado físico informe”. Bataille acredita que esta
metáfora suprime as fronteiras através das quais os conceitos organizam a
realidade, a recortam, a limitam em sentidos, como “
sobrecasacas matemáticas”.
Nossa fusão com o burro é da ordem do informe, já que este
não tem sentido. Nossa fusão é a abstração dos conceitos, das noções de
definição. Vamos desfazer as categorias formais, vamos negar que as coisas
tenham uma forma que lhes é própria. Afinal a própria vida veio do informe, vai
para o informe, e do informe se alimenta.
O burro é aquele cuja a existência foi subjugada à razão do
homem, o transporte, a distância, a carga, como prêmio, a insignificância e o
anonimato. No entanto sua polaridade entre
a obediência e a teimosia já o aproxima do homem.
O burro, antes chamado onagro pelos Sumérios, representava a
fauna selvagem, livre do humano, o testemunho de forças primitivas, fora de
nosso controle. Ao contrário do cavalo que sempre foi associado a formas
acadêmicas, apolíneas, cuja perfeição clássica é criação do helenismo, uma
expressão acabada e eterna da idéia. Nesse sentido o cavalo, ao contrário do
burro se assemelha a tantos animais idéia
criados pela fantasia mítica do homem: dragões , faunos, sátiros, centauros, esfinges,
sereias, deuses egípcios, indianos, minotauros,
etc...todos uma espécie de fusão entre homem e bicho, mas que dizem mais
respeito a uma separação: nós estamos aqui, estes são os deuses, só tem uma
parte da gente, mas não são a gente, são as fantasmagorias do duplo e da
imortalidade.
Em contrapartida o burro pertence a uma classe de animais
cujas formas são aquilo que Bataille chamou de dementes, tais como
orangotangos, hipopótamos, aranhas. A
exemplo desses seres, os burros se diferenciam
do ideal: cavalos, tigres, águias, seu
comportamento é desmesurado, cômico, grotesco, sua voz esganiçada e justamente por estas características, estes
animais projetam sempre um vir a ser animal, algo que está presente no homem,
que está em toda a sua plenitude biológica, ou seja, puro movimento, reações, contato, instinto,
atração, repulsão, corpo fisiológico, sensório. Estes comportamentos, sucedem a idealização, a máscara e o não
natural, introduzem a desordem no pensamento, tal como o burro, não evocam o
transcendente, o metafísico e sim o presente, porque o burro sempre está em
toda a sua verdade, ele é o caminho, é o feno, é a água, o burro é a fusão com a paisagem e com a
gente, não se coloca nem acima nem abaixo, não nos é objeto de adoração e esperança,
ele é o burro, o que vai, o que vem, carregador de todos em todos os tempos, e de
todas as cargas imagináveis.
Não é o que nós queríamos ser, mas somos nós. Vamos agradecer ao burro por
esta revelação!
Rubens
Zaccharias Jr.
2012
2012
Referências Bibliográficas
Moraes, Eliane Robert. O
corpo impossível. Iluminuras. São Paulo. 2002
Sobre a série Compositores de Ricardo
Ramalho
A pintura sobrevivente
( texto para a exposição Interlocuções entre prática e docência: professores pintores)
É comum a relação entre pintura e história da arte, história
que de alguma maneira recriou a própria ideia de Arte, dividindo suas
manifestações em grupos, artistas, períodos
e estilos, datas, povos e acontecimentos. Na história o tempo é totalmente
abstrato, calcado na linguagem e definitivamente não experienciado por nós. Em
uma olhada por sobre estas pinturas, constataremos que não podemos vê-las
apenas pelo vocabulário fixo e sedentário da história.
Nômades, as imagens, não só na pintura, estão totalmente imbricadas
de temporalidade e são a própria existência do tempo, arrastando com elas as
formas que, desde o platonismo, se pretendem fixas e eternas. As formas, pathos,
foram forjadas na antiguidade, ao contrário do que prevê a história, elas não
começam nem acabam pois também se transmutam no tempo e sobrevivem de uma maneira pulsante e intensa através de todas as obras do homem.
Na pintura as formas são evocadas na temporalidade do gesto,
ala prima. Há nesse processo um retorno,
não o retorno do duplo, ou do mesmo, do igual, mas um retorno primordial revelado
na ação que se dá na complexidade de todos os instantes, na energia
configuradora da pintura. Não se trata
do o que é, mas do como, não do um, do fixo, do articulado,
do decalcado na noção acadêmica de eficiência, mas sim o movimento, a conexão
dos campos, os desbloqueios, os devires...
Dessa maneira, estas pinturas sobrevivem, ou melhor, suas aparências
sobrevivem em seus aspectos materiais e temporais. Não é através de uma
metafisica-simbólica- alegórica, ou mesmo em nome de alguma “eternidade” que
vamos desvendar suas verdadeiras contradições, seus impulsos para
sobrevivência, para animalidade e para a metamorfose. Afinal pintar é puro devir, não é apenas um meio
fechado em si mesmo. Assim como na tragédia, evolui nas tensões, entre os
impulsos da vida e da morte.
As pinturas aqui mostradas solicitam muito mais que a visão,
elas solicitam o olhar, a memória, o saber, o desejo. São pinturas que agem como campos de forças e
não como campos de significações. Mesmo
quando evocam as aparências de paisagens, coisas, pessoas, que são lugares de
configurações, são nas forças, causadoras de todos os movimentos, que este devir-pintura
nos surpreende a cada olhar, atravessa o tempo,
nômade, como forma primitiva e sempre presente.
Rubens Zaccharias Jr.
2014
Manifesto do Caveirão
(Texto para a exposição 10x1 Nova Pasta e livro Copas )
(Texto para a exposição 10x1 Nova Pasta e livro Copas )
Os
esqueletos são o calcário por onde brota
o sangue que da cor ao corpo, o esqueleto é a arquitetura do corpo, sem o
esqueleto seríamos inteiramente informes. O Caveirão, assim como o esqueleto, é
símbolo daquilo que resiste.
Primitivo, o
Caveirão é obra por se fazer: ele corre
da polícia, ele sempre está em processo em suas andanças, é catalizador de
gente , representação e coisa ao mesmo tempo.
Para além do
futebol, o Caveirão pretende ser parte
de qualquer contexto, ele não é um mártir, ele é um devir na cidade, totalmente nômade,
ele se relaciona com tudo e com todos. O Caveirão também é metafórico,
metonímico, poético, trágico, cômico, complexo e espontâneo ao mesmo tempo.
Caveirão é
símbolo, imagem e coisa, uma armadura que se projeta para o alto, quem achar
que o Caveirão é engraçado se engana,
porque ao mesmo tempo se constata, na sua presença, a densidade do real.
Caveirão
mimetiza o espaço e foge a qualquer crítica, faz com que as pessoas saiam por
alguns segundos de seus juízos, deixem por um momento os gerenciamentos da vida
cotidiana, afinal, o Caveirão também invade a nossa imaginação, inverte os eixos, se diverte
com o nosso senso comum. E se mostra, se midiatiza: ora impressão, fotografia,
vídeo, performance, ou mesmo objeto.
Caveirão é Intensidade que se dá através dos fazeres.
Rubens Zaccharias Jr.
2014
Rubens Zaccharias Jr.
2014
Sobre a série Melancolia de Eduardo
Verderame
Melancolia: A alquimia dos símbolos
A começar
pelo nome: Melancolia (1514). Título
de uma gravura de Albrecht Dürer .Na
acepção técnica do termo, melancolia diz-se de todas as perturbações mentais
caracterizadas por uma tristeza anormal e crônica. No sentido comum e literário
é sintoma de tristeza leve, acompanhando a reflexão e o devaneio. (Lalande
1993). Na época de Dürer seria uma disfunção da alma com o elemento terra,
também nomeada billis negra. (Calazans 2012).
Esta gravura
antecipa as séries projetivas de Dürer, onde se destaca o livro: Instruções para medição (Nuremberg 1538),
onde Durer, após período de aprendizado em Veneza, ilustra através de gravuras
o funcionamento de seus vários dispositivos óticos. Tais dispositivos utilizavam
espelhos, pontos, linhas, cubos e serviam para fazer projeções espaciais dos
objetos observados. Dürer asseverava que a perspectiva não é algo compreensível
através da visão, do olho nu, mas sim o
resultado de muitas condições artificiais, para as quais ele inventara estes dispositivos.
Na Melancolia de Dürer vemos a ligação dos
mundos religioso, místico, científico e mágico, à cabala, à astrologia e à
geometria. A figura central, o Anjo Mikhael, não recorre à iconografia
tradicional dos anjos cristãos, seu pathos
remonta a antigos deuses helênicos, sua figura desdobra-se triste e pensativa a
possuir as chaves do poder cabalístico que revelam os mistérios do mundo. Vemos
também, um querubim, a balança, o sino, a ampulheta, o incensório e toda
estrutura pitagórico-platônica da imagem. Ligação cientifico-humanista num
universo judaico-cristão às portas do ascetismo protestante do norte europeu.
Porém há algo em Dürer que se transfere ao trabalho de Ev, a reunião rizomática
dos seus elementos conceituais.
Assim como
em Dürer, a Melancolia de Ev em sua
profunda riqueza alegórica coloca em cheque o confiar apenas na consciência do
olho. Como dizia Dürer: Um bom pintor está interiormente repleto de
figuras, e se pudesse viver eternamente teria sempre algo de novo a extrair das
ideias interiores de que fala Platão, para colocar em suas obras. (Panofsky
2000). Na Melancolia de Ev esta afirmação é patente: uma arte que revela uma
teoria das ideias e dos conceitos e não um sistema mimético de semelhanças.
Na
enigmática gravura de Dürer assim como no trabalho de Ev, temos que reencontrar
as origens, sobrevivências das imagens, daí o esqueleto sempre presente na obra
de ambos, o tempo, o poliedro, o cubo platônico, a palavra melencolia em um renovado céu pagão.
Na história em
geral é frequente o uso abstrato do tempo: eras, civilizações, períodos,
estilos, artistas, retórica frequente de que alguma coisa acaba para outra
começar, algo definitivamente distante da nossa experiência da vida e do tempo.
Melancolia pertence a uma longínqua
descendência que se atualiza em níveis imagéticos e conceituais a designar este
estado da alma. Melancolia em EV não é história, não se configura num tempo
abstrato, ou em referências formais ao próprio Dürer, e sim reinventa a
complexidade desse pathos melancólico, científico, poético, em seu próprio
espaço de ideias.
Em EV, o eterno
retorno sintomático do estado melancólico é a própria antítese dos fatores
abstratos da história, reconfigura-se sempre em sua apresentação-aparição no
espaço e em nossa psiquê interpretativa. Em EV fica claro o embate entre a imagem-
expansão gráfica do símbolo- suas repetições e sobrevivências e as relações semântico-psíquicas
advindas das frases, arranjo que nos fornece um tempo sem fissuras. Sobreviventes, os signos visuais são
abundantes nesta Melancolia e as frases
evocam instruções que inferem a signos em
potencial, signos que ainda estão por se fazer na arquitetura de suas
obras.
Frases que, permutando
suas ordens, são devires, ciclos, metamorfoses, sonhos, tempo, túneis, imaginação,
guerra, contrastes, forças que impulsionam a civilização, desde sempre. Nascidas
desse processo, as figuras do cavaleiro acéfalo, os cubos platônicos de
Jamnitzer e os esqueletos, conectam suas forças numa torrente de justaposições que
vão muito além do simples fato de serem padrões gráficos. Eles se referem diretamente
à obra alegórica de Dürer, e à reinvenção desse espaço, ou seja, um espaço
conceitual, onde as relações das coisas demovem aos nossos sentidos não um fim,
mas uma impermanência. Para além de todo
tipo de relação formal ou linear o discurso de EV solapa de cara a questão de uma
poética da forma assim como suas imagens não são instrumentos didáticos ou
jogos de adivinhações, sua obra não é uma questão material.
Uma obra que
se despede definitivamente da condição de objeto e vira instrumento de transformação
de um estado latente de coisas, uma alquimia do símbolo, Como se EV suspendesse suas imagens em um dispositivo
de inversão da perspectiva, uma quebra linear das partes. Em seu trabalho temos a troca da linearidade da
perspectiva clássica, pela verticalidade, pela repetição e pela sobreposição. Como
em muitas outras obras de EV, o que se configura é também o nosso próprio eixo
nesse espaço real, sem ponto de fuga.
Assim, o
desenho e a perspectiva em EV não são proposições diretamente compreensíveis, mas
encadeiam-se no jogo da inteligibilidade, da revelação e da surpresa. O artista
assim descarta o que seria um naturalismo
da perspectiva única, produzindo imagens que não se realizam em sínteses visuais
- impossível incorrer numa leitura de
seus trabalhos através do prisma puramente sensório ou formalista - a obra de
EV nos eleva a outros platôs, conjunção de forças que se apresentam não como
decalques unilaterais, mas como a mobilidade complexa de toda a representação.
Rubens Zaccharias Jr.
2014
A
experiência entre observador e obra de arte é ponto de partida para as complexidades
das várias abordagens filosóficas, científicas, psicanalíticas, pedagógicas sobre
o fenômeno artístico. Abordagens estas de
onde derivam os mais variados conceitos e interpretações que baseiam de modo
geral suas convicções na experiência estética.
Mediando
esta relação estão as imagens - espectros virtuais e visuais, temporais e
espaciais–, também presentes em nós como imagens mentais. Desde sempre, as obras de arte chamadas visuais
- esculturas, relevos, pinturas, fotografia, cinema, vídeo - utilizam materialidades
que se transformam em imagem, esse duplo do mundo. Sejam elas icônicas, indiciais
ou simbólicas, agem também em nossa memória resquícios espectrais, evocados
continuamente, correspondentes a imagens.
A noção esquemática
de uma teoria semiótica da imagem, como a descrita acima, procura ter como base
o que racionalmente encontramos na obra: suas cenas, cores, sinais, coisas,
objetos, símbolos, metáforas, grafismos, que, por sua vez, adquirem significados a partir do momento em que lemos a obra, juntando suas partes e potencializando seus signos.
Em Compositores não encontramos símbolos
isoláveis, como querem as teorias, ao contrário do que possa figurar, nesta
obra se afirma o próprio instante fenomenológico do processo, caráter diáfano
que revela configurações que nunca serão algo único, mas sim algo variável,
relativo e não apenas visível, como a nossa própria experiência vivente.
Basta
participar de sua operação, agindo sobre ela. Suas diversas configurações desagregam
os símbolos. Longe dos determinismos da história e das teorias da arte, Compositores, assim como os raios
solares que transpassam os vitrais das catedrais góticas, são um meio de
experiência real, não de ilusão, pois como diz RR, esta obra nunca afirma nada. A obra de RR vem nos abrir um caminho: a
constatação do visual como pura pulsão e não apenas como submissão a um visível
codificável. Nos deparamos aqui com um
estado pré-sígnico.
Assim, em Compositores, a binariedade observador-obra
estão agora num processo contínuo de desterritorialização, como diz Deleuze. Ou
seja, nos desterritorializamos para nos reterritorializar num outro, em outro
lugar sempre provisório. O processo é de imbricação, não de separação; em Compositores, nós simplesmente
reconfiguramos uma situação cujo resultado é indefinido, já que diante de um
novo espectador-vivenciador o objeto
muda sua configuração. Uma obra que não se realiza sem a experiência desse sujeito
desterritorializado/reterritorializado.
Compositores une pintura, objeto, instalação, performance,
museu, crítica, instituição, mercado, os múltiplos desdobramentos aos quais se
insere o objeto artístico. Em Compositores
os valores estão totalmente desvinculados das crenças, das redomas e das auras
do objeto artístico. Obra quase rarefeita, volátil como o éter, suspende os
juízos, rompe os paradigmas. Um nada que a tudo preenche.
Rubens Zaccharias Jr.
2014
O retorno do presente
(texto de apresentação para projeto de exposição de Eduardo Verderame, Tulio Tavares e Ricardo Ramalho)
As descrições
de obras de uma exposição coletiva, além de exaustivas, podem lograr a nossa
imaginação. Uma grande obra talvez seja aquela impossível de se lembrar. As três poéticas aqui apresentadas aludem a um
fato vital nos eixos entre espectador/obra/interpretação: A noção imagética do presente, ponto luminoso
que se transforma no olhar.
Animamos
todas as coisas que observamos no mundo, um processo que, no sentido
psicanalítico, une a pulsão escópica e o desejo. Em prática somos o sujeito que
olha. Neste processo de olhar somos também olhados, afinal nos vemos sempre em
relação à situação a qual nos encontramos. Percepção que vagueia pela aparência
das superfícies, para além do universo
pensante, é consciência situada na
própria vida do sujeito, seus desenvolvimentos, seus envolvimentos e afetos.
Assim, a
questão levantada por estes trabalhos, tão diferentes entre si, é a esta re-configuração dos nossos processos
visuais. Seus discursos desfazem o conceito de arte como lugar de um sujeito
central e onipresente. São trabalhos que
despertam o sujeito para correspondências, não para semelhanças. Nos despertam
para o acontecimento do agora que por sua vez transforma aquele ponto de vista
geometral de um universo racionalizado, em algo mais envolvente, sensório e
rizomático. Desta maneira, estes trabalhos se fazem para além de um mundo aparente,
eles detêm nosso olhar e seus inúmeros desdobramentos rumo a uma liberdade
contemplativa; afinal o olhar é um além do visível, um além das aparências.
Estes trabalhos são aporias, registros sobre
seus próprios meios (não só materiais), pois funcionam como meios e aberturas de
captação do nosso olhar. Captação sem nenhum elemento ilusório, pois suas
aparências se dão através, anamorfoses, mediações, conjecturas, gestos e atos.
Em Melancolia de Eduardo Verderame a projeção
de ligações simbólicas, matemáticas, probabilísticas, místicas, perfazem conceitos extra temporais. A obra não alude ao seu referencial como se
fosse um interpretante localizado historicamente, Melancolia é o próprio
desdobramento de algo iniciado a muito tempo, elo de ligação, não de ruptura.
Na série de
pinturas de Tulio Tavares se realiza um apelo direto ao olhar, suas pinturas são
a própria presentificação do visual e do olhar. As cenas e as figuras
decompõem-se na larga utilização do branco, cor que comporta todas as cores e
parecem despertar em nós, formas que se reinventam. São índices que
reconstruímos em nossa psique.
Compositores
de Ricardo Ramalho, nos induz, de maneira
muito peculiar, as relações com o presente. Como método, a obra utiliza-se do jogo,
da troca, do acaso, da inversão, da duplicidade, do verso, do reverso, causalidades invisíveis
que não podem ser determinadas.
Obras que
conjugam os seus fluxos, recombinam-se sem termos fixos. Afirmam o próprio fenômeno do olhar e seus
predicados constitutivos. Retorno do presente é uma exposição para afirmar um
processo vivo e não para dizer como uma obra deve ser.
Rubens
Zaccharias Jr.
2014
O caminho era quase
longo...
( texto sobre a performance Eu não nasci aqui de Samira Br. Sesc Ipiranga 2013)
A pintura por detrás do grande vidro
( texto sobre a performance Eu não nasci aqui de Samira Br. Sesc Ipiranga 2013)
Pós-humano, pós- história? O fluir de inflexões sonoras,
palavras inventadas, nomes de personagens, música, imagens de antigos recintos
e esconderijos. A sensação do vento... A
semelhança do Butô, eu nasci aqui dança um corpo de dentro, suas paisagens
projetadas como ecos de antigos e secretos movimentos, vivências desse corpo de
dentro; sentimentos que perfazem um algo inominável. Eu nasci aqui, eu não nasci
aqui...
Eixos que compõem uma narrativa que é a de um corpo que vive
a sua memória, a exemplo de Ka, é sombra da alma e vai de sonho em sonho sem
barreiras no tempo, o corpo assim, torna-se
a própria lembrança do gesto, abrigo de
outros tempos.
No interior desse abrigo (corpo) surgem visões de uma casa
ainda existente. Olfato, tato, audição em uma dança viva, sem vestir
personagens, o indizível presente... porque, na verdade, o corpo em si é a presença sem tempo, sem
medida, sem lugar, uma ruptura, não sabe direito onde se colocar, como se
comportar... tem sua espessura no inclassificável
agora.
Gestos sem representação, ou melhor, gestos que apresentam o
verdadeiro prazer desta vida: o voo de Ka
e seu gênio de pássaro. Assim, na performance
de Samira Br os elementos rituais não pertencem aos mitos, não reproduzem a ideia de infinito e de
eternidade, pois, a exemplo de Lucrécio,
é nas sensações de passado, presente e
futuro que cremos no mito dos falsos infinitos
que ocorrem como simulacros em
nossa mente, frutos de nossas relações teológicas, sensuais e morais com o mundo, as chamadas inquietações
da alma: ou o infinito prazer - como pretendemos obter com nossos corpos - ou a
infinita dor - como quer nossos medos, culpas e constrangimentos - tudo falso.
Eu nasci aqui, não trata
somente de um corpo performático, ou multimídiático, mas sim de um corpo que é nosso corpo na vida,
o corpo enquanto percepção, pensamento, linguagem. Sujeito e objeto ao mesmo
tempo, onde tudo que se pensa, (e que se lembra), é pensado e lembrado enquanto corpo, pois aquele
que pensa e não vive o canto dos pássaros e o contato com a terra, é aquele que
não pensa enquanto corpo, é aquele que se pretende sempre fora do corpo, fala
de um lugar onde não está e daquilo que não é, Eu
nasci aqui diz que é necessário nascer em nós a consciência de nossas
próprias vidas.
Rubens
Zaccharias Jr.
2013
2013
Referências bibliográficas.
Deleuze,
Gilles. Lógica do sentido. São Paulo
. Perspectiva. 1988
Khlébnikov, Velimir. Ka. São Paulo. Perspectiva. 1977
Kuniichi, Uno.
A gênese de um corpo desconhecido.
São Paulo. N-1 Edições. 2013 Khlébnikov, Velimir. Ka. São Paulo. Perspectiva. 1977
A pintura por detrás do grande vidro
(texto de apresentação para
a exposição de Jacques Jesion, Mube 2013)
Nesta série de pinturas vemos a estruturação de uma paisagem
que se reconstrói na memória. Construção
por onde vemos a abstração autônoma de todas as partes que compõem o seu todo. Ora naturalista, ora conceitual, tais
pinturas confirmam a constante mutação do elemento paisagístico na Arte. Entretanto o fator naturalista, nesta série, ganha outro significado. As composições
nos atingem diretamente, lembram alguma paisagem perdida em nossas lembranças,
onde as cores aparecem fora do lugar e são sempre reinventadas.
Dessa maneira, reforçamos a convicção de que nossas interpretações frente a estas obras se colocam além do mero jogo das aparências. Sobrepõe-se, a exemplo de De Stäel, as fronteiras da representação. Uma cor que é a coisa e não apenas mera coloração de um objeto pintado. São partes autônomas com intensidades próprias. O contraste do branco com o preto na silhueta de uma montanha, o cromatismo dos vermelhos, a relação dos verdes, azuis e castanhos que se complementam sem nenhum efeito prévio. Suas pinturas são provas irrefutáveis de tais processos, a relação entre o representar e o apresentar, polaridades que se revelam a cada olhar.
Dessa maneira, reforçamos a convicção de que nossas interpretações frente a estas obras se colocam além do mero jogo das aparências. Sobrepõe-se, a exemplo de De Stäel, as fronteiras da representação. Uma cor que é a coisa e não apenas mera coloração de um objeto pintado. São partes autônomas com intensidades próprias. O contraste do branco com o preto na silhueta de uma montanha, o cromatismo dos vermelhos, a relação dos verdes, azuis e castanhos que se complementam sem nenhum efeito prévio. Suas pinturas são provas irrefutáveis de tais processos, a relação entre o representar e o apresentar, polaridades que se revelam a cada olhar.
De frente a esta série, os arranjos envolvem nossos sentidos
numa instigante relação de contrastes.
Cores que preenchem formas e nos revelam o âmago, a carga imagética destas
obras, ou seja, nenhum ilusionismo, nenhuma simbologia, apenas sua
surpreendente presença.
Nestas obras o ato de pintar é apenas parte do plano, não é sua
total finalidade. Curioso também é o fato de que a sua pintura é feita do lado
detrás da tela, como se ao fazê-las, estivesse a ver o mundo de dentro de sua
própria tela.
Assim, a ideia de que a superfície imagética de uma pintura é
algo que se constrói em camadas sobrepostas, são aqui colocadas em cheque. O primeiro
contato é o que se eterniza. O que transparece nesses trabalhos é a forte
presença da linguagem gráfica como modo de produção e apresentação. As pinturas
são chapadas pelo vidro, que funciona
ao mesmo tempo como suporte e proteção. Desse modo, a tinta não entra em
contato direto com o espectador, ela é filtrada pelo vidro, que aparece como
parte da obra. Uma pintura que não busca conquistar o plano, mas resolver-se a
partir de sua própria condição.
Rubens
Zaccharias Junior
2013